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Arquivo da Categoria  Coisas da vida

30nov

De luas e esperança

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Sou fã das crianças, sempre fui. O mais lindo nelas são as lições de simplicidade que nos dão todos os dias. Inteligentíssimas, elas reproduzem, sim, o que veem à sua volta, mas oferecem aquele brilho especial, aquela cor de uma natureza ainda virgem, ainda intacta e plena, que as habita.

As crianças extirpam de nós muitas dores, amenizam cicatrizes, embelezam a nossa alma. Atingem nossa essência, às vezes, tão machucada – e, por isso mesmo, tão encoberta por nosso medo eterno de sofrer mais, de novo, tantas vezes…

Elas são nossos arroubos de paixão, em tempos de maduros odes à serenidade. Porque nos incendeiam, reacendem, nos obrigam a acreditar que ainda há muita beleza em nosso entorno. A paisagem de nós, que, pouco a pouco, ia amarelando, esmaecendo, se faz, de novo, colorida e alegre. Nosso jardim interior, que estava mais para Monet, readquire ares muito extravagantes, tatuando o amalucado surrealismo catalão em nossas almas.

Daí, a responsabilidade da família e da escola no acompanhamento dessa jornada de nossos pequenos heróis. E não para ensiná-los – que, disso, trata a vida e toda sua experimentação cotidiana. Entendo nosso papel diante desses pequenos geniais como referências. Afinal, a facilidade com que assimilam todas essas novas tecnologias que aí estão é, também, porta aberta a um mundo novo e desconhecido.

Dos perigos que este diferente universo abriga, só podemos protegê-los por nossos exemplos, valores e infinita capacidade de amá-los, haja o que houver, tenham a idade que tiverem. Começa no útero a nossa missão de ser a mão, o alimento, as flores que vão adornar seu caminho.

O delicioso comentário de meu netinho Guilherme, sobre a imagem que via pelas câmeras de monitoramento, me encheu de esperança de que ainda há belos jardins, nessas trajetórias. O reflexo de uma luminária na água azul fez com que ele explodisse em alegria: “Vovó, a lua caiu na piscina!”. Ao impacto do inesperado comentário de uma criancinha de apenas dois aninhos, me emocionei de verdade. Ele, todo faceiro, queria ir lá fora “pegar a lua”… Eu, sem saber como explicar que nosso satélite natural seguia lá, no céu daquela noite escura, totalmente encoberto por pesadas nuvens.

Foi essa, aliás, a minha sorte. Levei o pequerrucho lá fora para que visse que a lua estava escondidinha atrás daquele eterno nublado. Ele ficou tristinho, no primeiro momento, mas depois se convenceu. E me perguntou: “Quando ela voltar, você me deixa fazer carinho nela?”…

23nov

De amores e trejeitos

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Duas moças, em conversa sobre rapazes. Perto, uma velhinha, mais de 90,mas cheia de vitalidade, projetava o ouvido e cérebro na direção das moçoilas que, de entretidas, nem repararam nela. Era um blablablá engraçado. Só que, de repente, disse a primeira, uma morena bonita, ainda bem humorada: “Esta é a hora em que eu confesso”? À frente dela, a interlocutora, loira como uma fadinha de desenho animado, ameaça um palavrão, mas para na metade, instantes antes de arregalar os olhos claros e berrar, a plenos pulmões: “Não acredito! Tu andaste fuçando no meu celular?”.

Neste momento, a velhinha se senta no banquinho da praça, um pouco mais afastada, mas ouvindo plenamente a conversa, que já havia elevado em muito o tom. Então, compreende a situação: as amigas dividiam o mesmo namorado, sem que o pobre soubesse – mas a loirinha decidiu abrir o jogo para o jovem e a morena acabara de saber disso, ao ler as mensagens da amiga para o pretenso amor. E ele crente que estava abafando, com duas belas garotas ao mesmo tempo… “E o nosso trato de levar a situação até o noivado, quem sabe, até o casamento?”, protestava a moça morena, lembrando a amiga das divertidas tardes de que desfrutaram, comentando os encontros com o incauto – rindo muito, ao trocar impressões, as mais íntimas, sobre o jovem e suas qualidades erótico-estéticas. Mas, ao que parecia, a loirinha cansara da brincadeira. “Fiquei com pena dele”, começava a se explicar à amiga que, a essas horas, já estava mais do que furiosa… “Como é possível ter pena de um infeliz feio, pobre e sem graça, que se achava a última bolachinha do pacote porque estava pegando nós duas?” A loirinha não respondeu. Baixou o olhar e disse, apenas, que precisava dar um recado do rapaz. “Ele disse que nos perdoa. E que podemos continuar assim”…

A colega nem pensou duas vezes – deu uma risada irônica, rebolou sobre os altos sapatos, fulminou, outra vez, a agora ex-amiga com o olhar e se despediu: “Não, obrigada. Pode ficar com ele. Pra mim, a brincadeira perdeu toda a graça…” Já batia em retirada quando viu a velhinha no banco, ensaiando uma cara de paisagem. Não teve piedade. “E tu também, velha fofoqueira. Se quiser um homem feio, pobre, sem graça e de pinto pequeno, eu estou doando”. A pobre senhora quase morre de susto. Mas, logo se recupera: “Ah, minha filha, quanta generosidade para com esta solitária viúva há mais de 40 anos. Não sou ciumenta. Pode me dar o telefone do moço?”.

17nov

Sobre filhos e pais

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Ter um filho é rebentar o lacre do tempo e acenar para a eternidade. Uma atitude das mais simples, considerado o trânsito normal da natureza. O difícil é ajudar na construção do caminho que eles vão percorrer. Mais difícil, ainda, é antever – para tentar salvá-los – as frustrações, as decisões equivocadas, os complicados desvios de rota.

Alguém me disse que pais sempre se acham super em tudo – e têm a ousadia de entender que a vida dos filhos deve ser, ao menos em boa parte, e sempre nas mais importantes, claro, o espelho de suas próprias vivências. Natural que a gente se reveja jovens nos filhos e, por isso mesmo, busque dar a eles o máximo de nós – em amor, em dedicação, em educação e formação. Em linhas gerais, sem grandes fórmulas, queremos que sejam gente do bem, que estudem para construir seus próprios caminhos. Nem sempre é simples assim, no entanto. Por razões que jamais entenderemos, eles adquirem influências externas as mais diversas. Viram adultos, de uma hora para outra e, não raro, não conseguimos sequer reconhecê-los. Tomam decisões que não entendemos e se associam a valores que não nos traduzem. São outros, esses filhos que um dia foram de nós.

As muitas armadilhas do mundo externo às vezes causam sequelas irremediáveis. Provocam graves fissuras, os apartam do nosso afeto e proteção. Certamente, em situações assim, passaremos a vida tentando entender onde foi que erramos – se oferecemos amor, estrutura afetiva, uma boa escola, nada lhes faltou…Tempos atrás, um casal de idosos ocupou os noticiários por não saber o que fazer com o filho de mais de 40 anos – de classe média, formado, vindo de boa estrutura familiar – que abandonou a vida, ao abraçar as drogas. E, no entanto, apesar da gravidade do problema envolvendo crack, um dos entorpecentes mais letais, há vários outros tipos de droga ameaçando nossos filhos – há a droga da mediocridade, da crença na vida fácil, há a droga da paixão fulminante que cega e entorpece tanto quanto cachaça… São inimigos ocultos que, muitas vezes, só enxergamos quando o estrago está feito. Pode levar anos, até que se consiga extirpar esses cancros da alma e da vida de nossos filhos. Ou, que pena, podem ser “males” irreversíveis. É quando nossa imbatível natureza de sobreviventes dá o alerta: é tempo de rever nossos valores, de ser nossa própria metamorfose.

09nov

De gotas a sóis

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Algumas piadas que invadiram as redes sociais e os noticiários da semana passada surpreenderam, mesmo. A primeira delas, a alegação de que o deputado Eduardo Cunha não tem contas na Suíça, é apenas “beneficiário” de fundos de investimentos. Pior: li há pouco que sua defesa vai sustentar que o dinheiro veio da venda de carne para o Zaire. Hã? Temporais políticos e éticos permanecem sobre nós.

Mas, para além desse clima quase eterno de pesadas nuvens, no comando e no pensar do país, o tema-chave, nas terras de Dona Francisca, ainda é a literal instabilidade. Vejo ideias engraçadas de “correntes” – como a que propõem alguns amigos, que pretendem colecionar sombrinhas e guarda-chuvas. Ou anúncios alusivos à água incontida – trocam-se óculos de sol por capas de chuva, bloqueadores solares por galochas… O assunto não poderia ser outro, as lagoas em nós.

Vejo textos poéticos, românticos e conformados sobre o desvario de São Pedro. Vejo protestos e campanhas pelo retorno do Astro-rei. Vejo o mofo na vida e, sobretudo, na criatividade – as pessoas, aos poucos, começam a se cansar. Afinal, há limite para tudo, deveria haver. Especialmente para as águas que nos atrapalham e atarantam.

Vejo jovens e velhos mergulhados em depressão, vejo os pequenos narizes escorrendo, vejo que falta pulsar vida nas janelas permanentemente fechadas. Sinto forte a ausência dos tão belos gorjeios da passarada – alguns resistentes bem-te-vis ainda salvam a melodia da estação, escondendo-se das gotas em meio às maltratadas folhas das árvores.

As águas param a gente – nas ruas, nas estradas, nas melodias, nos versos e na prosa. E, se inspiram alguns, em românticas abordagens, já não são assim tão festejadas, nem cortejadas. Os exageros dos céus andam cansando os viventes. Os dias, experienciados em muito mais do que 50 tons de cinza, perdem o elã, ninguém mais aguenta chegar em casa e ligar a tevê, o notebook ou buscar um livro novo na estante – em vez de preparar aquela caminhada com os cachorros ou vestir uma roupa legal para o happy hour com amigos.

Por mais encantador e necessário que seja o recolhimento, é preciso, sim, aquele mágico tempo de florir. De escancarar as portas e janelas da casa e da alma. De, às vezes, apostar no par de óculos escuros como fator de proteção existencial, de sacudir a poeira e o mofo da vida. De rir o riso fácil de um dia de ensolarada e colorida primavera. Se é de ciclos que se entende o existir, parece que este nosso tempinho de cara feia anda abusando de nós. Por mais encantador e necessário que seja o recolhimento, é preciso, sim, aquele mágico tempo de florir. De escancarar as portas e janelas da casa e da alma.

03nov

Outonos

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Outro dia,conversava com uma amiga sobre o que gosto de chamar de tempo outonal – aquele momento em que as pessoas não têm mais trabalho formal, os filhos já construíram suas vidas (e asas) e eles passam a ser, para a família, a alternativa, apenas, de alguns finais de semana. Durante os demais dias, esses aposentados se revezam entre as tardes de ócio, brioches e lembranças – com sorte, ainda com a parceira de tantas décadas ou, quem sabe, na companhia da dedicada ajudante doméstica. Mas, muitas vezes, absolutamente sós. Uma ida ao médico, ao dentista, um passeio no shopping ou aquele raro encontro com amigos – é quase tudo o que resta.

Vejo a cena de desalento. Sobre o antigo móvel da sala de jantar, os álbuns de amareladas fotografias dão o tom sépia a seus dias. Na rotina, a espiadela diária nas imagens de sua vida e as lágrimas de saudade de seus tempos melhores. As notícias de jornal também não ajudam muito a manter o astral. E a televisão, inevitavelmente ligada, é apenas a caixa mágica onde moram o que ele chama de “pessoas de plástico”. Na volta à real, a certeza de que não há mais ânimo algum sequer para vestir aquela roupa bonita, ajeitar os poucos cabelos, ocupar-se com algum conserto doméstico, atividade que sempre lhe fora tão prazerosa.

Só tem vontade de ficar à janela, observando o tempo passar. No fundo, já se despedira de tudo e de todos quando deixou de se sentir útil e amado. E isso foi tão de repente! Um dia, era o dedicado chefe de destacado setor de uma grande empresa, coordenava uma boa e numerosa equipe, tomava as decisões mais importantes, usava todo seu conhecimento técnico e a boa dose de sensibilidade para equacionar grandes desafios diários. Mas, tão rápido que sequer teve tempo de entender, já não tinha mais expediente, os amigos de cerveja e causos foram sumindo, a mulher falecera, os netos já não eram mais as crianças com quem tanto gostava de se ocupar.

Às vezes consegue se perguntar como deixara de perceber o tempo a lhe escorrer por entre os dedos. Mas quase sempre prefere não pensar nisso e se distrai com as lembranças alegres. O único sorriso semanal é apenas um arremedo na dura fisionomia. E só acontece quando a jovem, bela e péssima motorista da casa próxima faz infindáveis manobras para acertar a porta da garagem. Nesse momento, percebe que ele próprio já não dirige – nem o carro, vendido para o neto a preço de avô, e, menos ainda, sua própria existência. Espatifara-se, na bruma do tempo, o seu timão. É a deixa para voltar à janela da vida – e esperar que o verão traga alguma boa surpresa.