Menu

Blog

Arquivo da Categoria  Coisas da vida

12abr

Sobre intolerância

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Outro dia, estava lidando com um assunto polêmico – mas que eu gosto de abordar, pelo simples fato de que esse tipo de tema mobiliza as pessoas, faz ao menos uma ou duas delas pararem para pensar, quem sabe outras duas se posicionem melhor, ou, pelo menos, se sintam curiosas sobre as abordagens e opiniões. Sim, todo mundo tem uma opinião e boa parte das pessoas adora explicitá-las nas redes sociais.

Intolerância é o tema que me consome, por esses tempos. E não apenas a mim, por dever de ofício, mas também a mim, por dever de ser. Fiquei chocada com as imagens de uma mulher sendo barbaramente humilhada e agredida fisicamente por funcionárias de um supermercado aqui de nossa Joinville. Não apenas pelo ato em si, mas pelo fato de grande parte das pessoas acharem aquilo… normal! Ao que parece, a moça seria um desses seres que se perderam na esteira das pedras. Nos descaminhos do pó. Em nuvens negras de fumaça e desespero. E centenas de juízes sem toga se aliaram às justiceiras, condenando a pobre criatura à fogueira do escárnio público.

Essa louca “sede de justiça” parece entorpecer gente que, até há bem pouco tempo, eu supunha ser pessoas de bem, solidárias e afetivas. E a questão da histeria coletiva que assombra este país é apenas pano de fundo de uma grande doença social. Leio ofensas contra empresas, empresários e artistas, contra setores inteiros, contra inocentes jovens, cujo maior crime foi passear pelas ruas de mãos dadas, usando camiseta do partido com que se identificam.

O mais estranho é que temos sido absolutamente intolerantes com tudo o que nos incomoda. Seja o lado político diverso do meu ou o gênero musical que não aprecio. Somos intolerantes com quem nos pede uma ajuda, na rua, e com quem não consegue se vestir com roupas de grife e acessórios caros. Somos intolerantes com nossos pais e avós, velhinhos de vida, a quem negamos, constantemente, o direito ao convívio e ao amor da família – não temos tempo para eles, que coisa, não? Eles, no entanto, tiveram todo tempo do mundo para nos trazer à vida, amparar nossos passos trôpegos e nos apoiar nas incertezas e desvãos.

Mas não somos intolerantes conosco. Ao contrário, há sempre uma boa desculpa, uma boa explicação, um fechar de olhos estratégico diante do sangue vermelho das feridas que provocamos no outro. Não sou religiosa, não vivo em nenhuma igreja ou culto, não frequento terreiro algum. Mas nesses momentos em que fico indignada com esses ritos sumários de gente ferindo gente, não consigo deixar de me lembrar de que, há pouco mais de dois mil anos, xingamos, agredimos e crucificamos o herói maior do mundo judaico-cristão. Assim como matamos, prendemos e violentamos muitos outros heróis da tolerância e da paz, anônimos atores e atrizes da nossa insanidade.

29mar

O homem nu

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Um sargento do exército foi levar a filha a uma creche, em Brasília, e percebeu que as crianças olhavam para um homem que estava nu, à janela de seu apartamento. O militar, então, após uma breve discussão com o exibido, sacou sua arma e atirou contra o cidadão – que não se feriu. Ao ler a notícia, fiquei refletindo sobre o fato, claro, imaginando que o rapaz peladão fosse apenas mais um desses rebeldes sem causa – ao que constava, ele tinha pouco mais de 20 anos. Mas me entristeci, ao ler os vários comentários de pessoas lamentando que o sargento houvesse errado o tiro e chamando o rapaz de pedófilo, tarado e coisas do tipo. Além da carga imensa de explícito ódio daquelas pessoas, o que mais me incomodou foi o julgamento sumário a que foi submetido o tal nudista.

Penso que lidamos muito mal com nosso próprio corpo e, especialmente, com nossa sexualidade. Honesta e felizmente, nunca tive nenhum contato com alguém diagnosticado oficialmente como portador da doença da pedofilia. Porque, sim, trata-se de uma doença psíquica, identificada e descrita pela Organização Mundial da Saúde. Não saberia dizer se o rapaz nu à janela de sua casa estava ali para se exibir às crianças da creche, se foi morar ali na intenção de estar mais perto das garotinhas e garotinhos, se ele sai à rua à procura de menores de idade para molestar – mas acredito que não, já que a matéria que li não cita qualquer antecedente do rapaz. Quero pensar que ele apenas saíra do banho e chegara à janela.

O mais grave desta situação foi a imensa quantidade de “paladinos da justiça” que se manifestaram de maneira grotesca, para ser sutil. Não faço, evidentemente, a defesa do sujeito peladão – pode ser que ele tenha feito tudo de caso pensado. Mas nossa sociedade hipócrita e doente tem pressa, sempre, de eliminar provas de suas próprias mazelas. Não me surpreenderei se, em função do incidente, o rapaz receber um selo de pedófilo na testa – e passar a ser hostilizado e desrespeitado pela vizinhança.E o que mais me deixa incomodada é a certeza absoluta de que, dentre esses justiceiros tantos – nessa e nas várias polêmicas que habitam as redes sociais –, certamente há muitos, mas muitos homens que ofendem as mulheres nas ruas, ainda que em disfarçados elogios. Há muitos, ainda, que agridem e matam suas esposas e namoradas, que desrespeitam seus próprios filhos. Antes de consertar o mundo, deveríamos olhar um pouco mais para o próprio umbigo – esteja ele exposto ou zelosamente escondido sob as roupas e as cores do preconceito e do ódio.

21mar

A alma é o sal da vida

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Trabalhamos quase que exclusivamente com valores exatos, matemáticos, cartesianos, concebidos pelo cérebro – ainda que relativizados pela antropologia. Sal da vida, a alma vai além desse valor – transcende. Posso usá-lo na medida e na dose que eu quiser, e isso quem define é minha própria essência. É esse o sal que acolhe a beleza, que se emociona com uma criança, que atropela a rotina para abrir espaço para a música, que comemora a estética. Mas é também o que amarga a dor de uma tragédia, que se veste de luto, que se retorce de indignação diante de males externos e injustiças. É ali que repousam, inabaláveis, o conjunto de valores éticos e as marcas da caminhada vida afora. Ali, ficam registradas as destemperanças e desesperanças não resolvidas. Ali, permanecem os carimbos da existência. Tenha o nome que tiver, na cultura onde estiver inserido, o sal da vida reina absoluto sobre o racionalismo exacerbado. É o contraponto da desumanidade. É o que nos faz gente. Mais que isso: que nos faz entender melhor toda a outra gente que gravita em torno de nós. É o ponto de partida e de convergência da solidariedade.

Mas, acima de tudo, o sal da vida é o melhor tempero para todos os nossos tempos – o tempo de sorrir, o de chorar, o tempo de refletir, o de seguir e o de recuar. O tempo de criticar e o tempo de ouvir. Todos os tempos de apenas um tempo de nós são equilibrados pela dose exata deste mágico sal.

Embora eu esteja aqui fazendo ilações sobre este conceito, devo esclarecer que a ideia não é minha – mas de um grande amigo, que gosta de filosofar um pouquinho, sempre que encontramos dez minutos de sossego entre sua agenda superlotada e seu espírito mais do que generoso.

Há muito não conversávamos – e isso me faz falta, porque sempre aprendo muito com ele. E quando me assaltam, novamente, esses conceitos existenciais, no meio de um burburinho político sem fim, impossível não lembrar do lindo conceito de alma. Mas também de outro sal, o da Terra, magistralmente talhado por Beto Guedes. “Terra, és o mais bonito dos planetas e estão te maltratando por dinheiro”, canta Beto, em um verso que se encerra no conceito de que o planeta é a nossa nave-irmã.

E este mesmo sal que nos impõe vísceras e acolhimento, dores, suores e sangue, que nos deixa mais colorida a verve e cristalina a visão do outro, é que nos inspira a ouvir o que nos pede a alma, apreensiva, neste tempo de destemperos: “Deixa nascer o amor, deixa fluir o amor, deixa crescer o amor, deixa viver o amor – que é este, sim, o sal da Terra”.

01mar

Como nossos pais

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

A gente vive se repetindo – e repetindo outros. Às vezes, nem me dou conta, mas repercuto meu pai, com suas frases inteligentes, sua voz mansa. Bebo na sua mansidão, continuamente. Há uma enorme sabedoria em frases simples como a famosa “o melhor remédio é o tempo”. Talvez porque não há, ainda, como deslindar os mistérios do viver, que a filosofia dos grandes – e pequenos – pensadores não tenha sofrido grandes transformações.

Mas sinto falta dessa efervescência existencial na juventude. Hoje, eles não têm mais muito tempo para pensar. Aos 14 ou 15 anos, seguem sem ter a menor noção do sentido mais estrito da vida. Qualquer que seja ele – ou mesmo a falta de um. Essa meninada linda, com suas roupas de grifes, seus equipamentos eletrônicos e sua música ruim, ainda tem um logo caminho a percorrer na direção da vida propriamente dita. Sem querer cair na armadilha que a idade nos impõe de ficar comparando tempos tão diversos como o da minha longínqua adolescência e o de meus netos, percebo, na intensidade volátil das relações desta faixa de idade, um certo não-viver um pouco mais profundo.

Suicidar-se por amor aos 12 ou aos 16 anos escapa à minha compreensão – e, no entanto, os casos se multiplicam por aí. E, hoje, essas quase crianças fazem terapia, mal se acomodam em famílias de rotinas aceleradas e o viver bem muda muito de sentido. E ninguém remete a Clarice Lispector, pensando que a arte de enfrentar a existência está, justamente, em não se fazer dela nenhum grande projeto, nenhuma grande missão – viver, apenas, metabolizando cada momento. Hoje, a garotada adota “ganchos” estranhos como o mundo fashion, a tecnologia, a fluidez espontânea da chamada cultura pop contemporânea.

É certo que aos 30, esses meninos e meninas vão amadurecer e assumir a fase adulta. Então, sua formação familiar é que vai falar mais alto, seus verdadeiros valores devem aflorar e corrigir rotas, repensar projetos, reunir identidades. E aí, talvez, resida o problema maior, à medida que, ao estereotipar a família pela ausência de equidade e de respeito às diferenças tantas, a sociedade acabe produzindo núcleos de pessoas emocionalmente desequilibradas e imersas em solidão. Nenhuma grande novidade, diga-se. Ainda somos os mesmos.

22fev

É preciso que se dê um tempo

Texto: Ana Ribas Diefenthaeler

Fonte: A Notícia

Estava aqui me lembrando de que não faz muito, vivíamos o turbilhão do final de ano. Gosto desses tempos – parece que as pessoas ficam mais afáveis, sorriem mais, estimulam entre si sentimentos muito bons como a solidariedade, o carinho pelo outro, seja seu igual, seja diferente. Só acho meio estranho porque, assim como chegam muito rápido, também se despedem em questão de momentos esses tempos de alegria – que, segundo minha bem-humorada filha mais velha, têm raiz na expectativa que todo mundo tem de… entrar em férias!

Mas também elas, tão esperadas durante o ano, passam rápido. Então percebo que essa aceleração absurda nos persegue a cada minuto. Outro dia, me peguei brigando com o micro-ondas porque o dito-cujo não aqueceu o leite do netinho em 15 segundos – e tive que colocar mais preciosos cinco segundos. E haja paciência para aguardar esse tempo enorme…

Sem parar um instante com minha lida de avó, lembro-me de que, quando criança, fazíamos ovo quente de manhã porque era o lanche mais rápido – atrás, apenas, do pão com manteiga, claro. Sem contar o tempo necessário para a água ebulir, o ovo ficava exatos cinco minutos cozinhando. Quase comida instantânea! Quem tem cinco minutos hoje para doar? Somos tão estimulados a fazer de nossa vida uma verdadeira maratona, que, nos raríssimos momentos em que podemos parar por minutos – ou algumas horas, por que não? – uma horrível sensação de culpa nos impede de relaxar. “Eu poderia estar adiantando aquele trabalho, poderia estar organizando as malfadadas gavetas do bufê da sala, fazendo alguma coisa útil e, no entanto, tenho meia hora livre e posso ler um capítulo inteirinho do maravilhoso livro do uruguaio Benedetti.”

Mas talvez uma das nossas mais alegres e desafiadoras missões seja a de achar tempo para os amigos. A doce expectativa de tomar aquele café ou aquele chope tão adiado com uma amiga especialíssima, com uma parceira de trabalho, com gente que a gente acha muito gente. E trocamos sorrisos e afagos, lembranças e histórias, trocamos presentes, símbolos, carinho. É nossa singela recompensa pela ausência por tanto tempo.

Mas vejamos: já estamos quase no terceiro mês do ano – e quantas vezes você cumpriu aquela promessa do famoso “vamos nos ver mais”? O Carnaval já passou, já está chegando a Páscoa e ainda não conseguimos nos organizar para estar mais tempo com quem amamos. Então, ligue para sua mãe, vença a preguiça e vá tomar dois chopes com as suas amigas, seus amigos, que o tempo, ele mesmo, é impiedoso inimigo. Passa correndo, sem deixar vestígios – só saudades.